terça-feira, 1 de fevereiro de 2011

4. blind date

Não interessa como a conheci. Conheci-a. Nem interessa por que combinámos o blind date. Combinámos. É este o ponto de partida da história: eu conheci-a e combinámos um blind date.


ELA > Há um motel perto da A2, na estrada para Sesimbra. Chama-se Os Quatro Flamingos. Estilo americano: quartos de rés-do-chão dispostos em duas alas e uma recepção onde se levantam e depositam as chaves sem ser necessário apresentar identificação. Encontramo-nos lá amanhã, às onze da noite. Quarto 11.
EU > Já tens o quarto marcado?
ELA > Acabei de fazer a reserva.
EU > Que eficiência...
ELA > Eu sou assim.
EU > Não podíamos encontrar-nos num sítio mais a jeito? Um hotel em Lisboa?
ELA > Não. Tem de ser nos Quatro Flamingos.
EU > Seja nos Quatro Flamingos.


Enviou-me um email com um mapa desenhado a esferográfica onde se indicava a saída da A2, o número de quilómetros que era preciso percorrer a seguir e o semáforo onde teria de virar para uma estrada secundária que me levaria enfim ao motel. Fazia mapas como um homem: uma linha assinalada com meia dúzia de setas e legendas breves. Nada de pormenores supérfluos. E o telefone do motel, para o caso de eu me perder.
Não sou esquisito com os sítios. Dou uma queca em qualquer lado. Certa vez comi uma divorciada na sala, enquanto os filhos dela dormiam. Ela não se atrevia a fazer barulho. Saber que ela não gritaria despertou todos os meus instintos sádicos. Durante duas horas diverti-me a comê-la da forma mais dolorosa que consegui. No fim deu-me um beijo apaixonado, antes de ir ver se os filhos estavam bem aconchegados nas camas. As mulheres são muito complicadas. Mas um motel desconhecido numa estrada desconhecida, com uma desconhecida – uma desconhecida disposta a encontrar-se num sítio desses com um tipo desconhecido – bem, não é coisa que deixe um homem sossegado. Veio-me o Bobbitt à memória. Prometi a mim mesmo que iria assegurar-me da não existência de qualquer objecto cortante no quarto. Nem mesmo uma tesoura das unhas.
No dia seguinte, depois de jantar uma coisinha leve, meti-me à estrada. Havia um semáforo, como dizia o mapa, e uma placa de madeira pintada assinalava o ponto onde se saía da estrada para um caminho de terra, que entrava pelo meio dos campos, escuro e cheio de buracos. Avancei devagar, tentando poupar a suspensão do TT Boy, durante cerca de quinhentos metros. O motel surgiu por fim, um edifídio comprido e térreo encimado por um letreiro de néon verde e azul: Os Quatro Flamingos. O sítio não tinha nada a ver com flamingos, fossem eles quatro ou apenas um: seco, descampado, com dois candeeiros muito fanados a iluminarem o bocado de estrada em frente do edifídio. Uma série de portas desenhava-se ao longo das paredes, onde deviam ser os diferentes quartos, e havia umas sebes pequenas em frente das portas, num arremedo de privacidade. O aspecto geral era desolado e pindérico.
«Perfeito», murmurei.
O número 11 ficava num extremo do edifício, fora do halo luminoso dos candeeiros do motel. Uma situação bem escolhida, pensei. Já havia um carro parado diante da porta do quarto. Lancei um olhar à matrícula, para referência futura. É uma distracção indesculpável numa rapariga cuidadosa, deixar que lhe vejam a matrícula do carro. Apalpei os bolsos à procura de cigarros e depois lembrei-me que tinha deixado de fumar há 3 dias.
Senti dúvidas. E se do outro lado estivesse uma coisa horrível? A net estava cheia de histórias assim. O puto de 17 anos que gastou as economias num bilhete de avião para ir ter com a cyber-amada ao Canadá e, quando lá chegou, descobriu que era uma velha de 70 anos. A rapariga que combinou uma semana de férias em Paris com um velho conhecido dos chats e apareceu duas semanas depois cortada às postas, espalhada pelos caixotes do lixo do XVIème Arrondissement. Et coetera. As histórias eram mais que muitas e todas diferentes, melhores do que um Stephen King ou um Michael Crichton algum dia conseguiriam inventar. O que sabia eu?
Passaram-me outras ideias horríveis pela cabeça. E se a tipa fosse da polícia? Uma operação qualquer para apanhar tarados na net. Vi-me apontado como torcionário. Diante do tribunal. Citado nos jornais.
Abri a porta do quarto. Fiquei um instante parado no umbral a olhar para dentro. Não havia nada para ver. O quarto estava às escuras. Na luminosidade que entrava pela porta aberta, por cima do meu ombro, só se distinguiam contornos vagos: a cama, uma cadeira, a porta da casa de banho. Havia um leve odor no ar, um perfume que reconheci mas não consegui identificar. Fiquei ali durante um bocado, atento aos ruídos. Mas não havia ruídos.
«Olá», disse eu.
Não houve resposta.
Devia ter dito: «Onde estás, minha puta?» Mas não fui capaz. Sou um tipo antiquado.
Pensei: vieste até aqui, agora entras. Não vais armar em maricas e fugir com medo do escuro. Mas continuei ali parado. Vinha-me outra vez à ideia o Bobbitt.
A gaja, se estava a fazer aquilo de propósito, era mesmo boa. Sentia-me como se estivesse dentro de um filme. Sem o «câmara, acção!» para tirar a ponta.
E nada, nem um rumor. Raio de vida.
«Olá», disse eu outra vez, e entrei.
Dei dois passos dentro do quarto e foi então que a porta se fechou. Devagar e sem barulho. A luz extinguiu-se dentro do quarto como se se tratasse de um túmulo e eu senti as bolas enrolarem-se e tornarem-se pequeninas como as de um bébé. O que eu queria realmente era pirar-me dali para fora. A puta que se lixasse. A queca que se lixasse. A minha honra que se lixasse.
«Olá», disse então a voz dela atrás de mim. Era a voz dela.
«Olá», disse eu mais uma vez, sem me virar.
Nos filmes, esta imobilidade corporal transmite tensão e firmeza. Mas eu não sentia firmeza. Estava paralisado. Senti as mãos dela subirem pelas minhas costas, por cima da camisa. Uma língua molhada tocou-me o pescoço. Senti-a respirar mesmo por trás de mim e senti um cheiro agradável, a pastilha elástica, que me descansou. Então, de repente, houve um movimento brusco e um tecido encostou-se-me à cara, por cima dos olhos e do nariz. O toque do tecido transformou-se em pressão quando ela apertou o nó na minha nuca. Reconheci um lenço de seda. Não ofereci resistência. Não senti falta de ar, nem ânsias. Senti curiosidade: o que era aquilo. E senti um arrepio nos tomates. Depois as mãos dela rodearam o meu peito e começaram a desapertar-me os botões da camisa, e depois das calças. Duas mãos frias espalmaram-se contra o meu peito.
Eu teria preferido encontrá-la deitada na cama, nua e disponível. Talvez com o lenço de seda em volta do pescoço. É um fétiche meu: corpos de mulher nus com o pescoço tapado. Mas não disse nada disso. Perguntei:
«Onde estão as correntes?»
«Queres?» retorquiu ela num tom perigosamente interessado. Tive a certeza que não era no corpo dela acorrentado que ela estava a pensar.
«Talvez noutra ocasião», respondi.
O corpo dela era morno e firme, levemente musculado. Ombros largos. Mamas pequenas. Tudo bem. Nunca gostei de mamas grandes. Sobram das mãos. E sobra é desperdício.


Fodemos. Também não vou descrever. Já há muitas descrições. Algumas muito melhores do que qualquer coisa que eu tente fazer.
Depois de fodermos fiquei sentado na cama, ainda vendado. Ouvia-a andar pelo quarto, abrir a água, mexer em roupa.
Sentia-me estúpido, ali sentado, nu, vendado, à espera, portanto pus-me a falar.
«Vou confessar uma coisa», disse eu. «Receava que fosses uma velha horrorosa. Este segredo todo... Qual é a cor dos teus olhos? Não respondes? Está certo. Eu não te vejo e tu não falas. Se fosse filósofo, perguntar-me-ia se existes realmente ou se não passas de uma alucinação. Uma construção virtual do meu cérebro. Demasiada exposição às radiações do écran. Conheces aquela frase: como é que se pode viver sem conhecer Palermo? Como é que se pode dormir com alguém sem lhe ver a cara? Olha, vou retirar a venda. A brincadeira teve piada mas agora chega. Concordas?» Não houve resposta. «Vou tirar a venda», avisei. «Agora.»
Tirei a venda. Não havia mais ninguém no quarto.
«Foda-se!»
Deixei-me cair para trás nos lençóis. Estava cheio de sono. A idade não perdoa.


O motor de um carro. Não valia a pena correr à janela. Tenho boa memória visual. Tinha a matrícula gravada no meu cérebro. Ri-me.


A matrícula pertencia a um rent-a-car. Soltei uma praga. A puta!

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