terça-feira, 1 de fevereiro de 2011

8. o jantar

Na manhã de quinta-feira Matilde recebe um e-mail de Luro Baus a convidá-la para jantar em casa dele no dia seguinte. Seguem-se instruções minuciosas:


Tomo a liberdade de lhe fazer algumas sugestões para a noite de amanhã.
Como sabe, a minha mãe vive comigo e virá recebê-la, pelo que deverá trazer uma roupa conservadora, que não fira a sua sensibilidade antiga. Sugiro uma blusa de gola alta, justa, sem mangas, e uma saia pelo meio da perna. Um mensageiro entregará o conjunto em sua casa esta tarde.
Como marca da sua dedicação à minha vontade, não usará cuecas. E deve colocar o buttplug de gel rosa que tive o prazer de lhe oferecer em Paris.
Luro.
A casa (grande, branca, com janelas inglesas) fica numa rua sossegada por trás do Casino, entre carvalhos e plátanos. O pintor vem recebê-la ao portão, subindo depois com ela o caminho entre as árvores que conduz à porta principal.

«Vejo com agrado que seguiu as minhas instruções», disse ele.
«Sim.»
«Todas?»
«Todas.»
«Ah!»
«Tinha escolha?»
«Não me pertences», retorquiu ele. Tratou-a por tu. Matilde anota o facto. Foi transposta uma barreira. «Muitas coisas poderiam ter-se interposto entre ti e este momento. Até», e ele sorriu, «a tua vontade.»
Chegaram ao fim do caminho e Luro Baus empurrou a porta e afastou-se para ela entrar.
A casa, por dentro, não exibia a grandeza que a vista do exterior sugeria. Um átrio estreito, esmagado por uma escada em madeira que conduzia aos andares superiores. A luz, vaga, revelava a poeira que cobria os móveis. Havia o cheiro a mofo próprio dos lugares pouco ventilados. Matilde deu por si a mover-se cuidadosamente, tentando abafar os passos.
A mãe de Luro Baus estava ali para a receber. Era uma bela velha senhora de bandós branco-violeta e nariz adunco, com olhos pequeninos, atentos e sorridentes. O que saberia ela da vida secreta do filho, dos seus gostos? Enquanto a cumprimentava Matilde estava dolorosamente consciente do buttplug e da ausência de cuecas. Isso era constrangedor e excitante.


*


«E esta é a minha parte da casa», disse ele, empurrando uma porta.
Matilde penetra no covil de Luro. É assim que, secretamente, lhe chama. O cheiro, a luz e o espaço mudam magicamente. Nada ali recorda a entrada da casa, a velha mãe ou as ruas burguesas do Estoril. Um grande espaço vazio onde meia dúzia de objectos lançam pesadas forças gravitacionais, que obrigam Matilde a deslocar-se de acordo com percursos pré-determinados – ou, pelo menos, é essa a sensação que a invade. Janelas largas por onde entra o sol em grandes jorros. Depois da penumbra da casa antiga, o espaço e a luz são como socos violentos que a fazem cambalear.
No centro da sala, coberta por um tapete cinzento e espesso, um sofá branco de três lugares. Luro Baus dirige-se para ele e ordena a Matilde que se sente. Ela obedece. Ele mexe em qualquer coisa num dos braços do sofá e começa a ouvir-se uma música que ela reconhece rapidamente: Leonard Cohen, In my secret life.




Matilde observa a sala à sua volta. Dois nus esculpidos em mármore negro e um aquário enorme dominam o lugar. Não há móveis, tirando o sofá e uma longa prateleira que corre uma das paredes a todo o comprimento. Um quadro domina a sala: um corpo feminino atado a um poste, num fundo de azul e amarelo – uma versão tropical de Modigliani.


«Gosta?» pergunta Luro Baus ao ver que ela observa o quadro. Mas o tom em que faz a pergunta torna evidente que a opinião dela lhe é completamente indiferente. Para Matilde é uma experiência nova – ver as suas opiniões, os seus gostos, ela mesma, serem liminarmente ignorados. A sensação que Luro Baus transmite é de estar interessado nela como objecto – atraem-no as roupas, as performances e, eventualmente, o corpo dela, mas esse interesse não se traduz em expectativa ou disponibilidade relativamente a quaisquer outros aspectos da vida ou da personalidade dela. Ela é um objecto – uma bela coisa acabada, finita, sobre a qual fora feito um juízo, à qual se atribuiu um lugar e uma função, da qual não se esperam revelações ou alterações futuras.
«Vinho? Cognac?»
Matilde recusa.
«Água?»
Ela olha-o nos olhos: estará a divertir-se à custa dela? Mas a expressão dele é de absoluta seriedade.
«Não, obrigada.»


Entram numa galeria formada por uma antiga varanda, agora fechada e com grandes janelas veladas que deixam entrar uma luz abundante mas não tão intensa que estrague as tintas dos quadros que enchem a parede.
«Este é o meu museu particular. Alguns são meus. Outros não. Não encontrará aqui gente famosa. Não tenho dinheiro para isso. De resto, o único que gostaria de ter está num museu público: O Jardim das Delícias.»
«Ah!»


«São apenas corpos.»


«Histórias de paixão e morte. Tango e facas. Uma mulher negra possuída por um marinheiro bêbado, azul como o oceano que lhe inundou os pulmões uma noite. Solidões.»


«Nem mesmo os cisnes atingem esta beleza. A beleza e a elegância exigem sofrimento. A escrava perfeita deve ser tão elegante e suave no seu sofrimento como esta bailarina.»
Ao lado há uma segunda fotografia.
[o cisne negro]
«Uma versão do Lago dos Cisnes. A coreografia desse bailado sempre me irritou. Tão pura e imponderável. Quis fazer uma versão em que o cisne fosse humilhado.»
«Eu acho-o belo assim», diz Matilde.
«Sim. Eu também.»


«Na Segunda Guerra Mundial, os japoneses obrigaram centenas de mulheres coreanas a integrarem bordéis itinerantes que acompanhavam os exércitos. Eram verdadeiras escravas, sem direitos ou segurança de espécie alguma, usadas para acalmar os instintos animais dos soldados. Estas pinturas foram realizadas por sobreviventes, 30 ou 40 anos depois. São notáveis porque mostram até que ponto os acontecimentos as marcaram.»
«Como ferro em brasa», murmura Matilde.
«Estas histórias interessam-me porque falam de uma escravatura violenta e despótica», continua ele. «No mundo bdsm a escravatura significa geralmente um contrato de uso e protecção, um pouco à maneira dos antigos contratos de casamento. O Master possui a escrava mas, geralmente, assume para com ela uma série de deveres, incluindo alimentá-la e abrigá-la; e, ainda que a utilize para jogos sexuais impensáveis à luz da velha ética burguesa, mantém-se obrigado a respeitá-la na sua dignidade fundamental de ser humano, o que quer que isso queira dizer. Isso não me interessa nada. Atrai-me a escravatura sexual. O tráfico de carne branca, por exemplo, como ele existiu no princípio do século entre a Europa Central e a Argentina, para onde raparigas polacas e checas eram atraídas com propostas de casamento e depois forçadas a trabalhar em bordéis. Ou estes bordéis onde o exército japonês invasor obrigava centenas de raparigas coreanas e chinesas a aliviar as tensões da soldadesca. Isso interessa-me. Não me interessa a escravatura negra da América confederada, que era essencialmente económica e onde as mulheres, tal como os homens, eram essencialmente bens, passíveis de transacção e, como tal, valiosos. Não se destrói um bem valioso. A escravatura branca voltou, agora que os países de Leste acabaram, e isso é bom. Escravas albanesas, moldavas, bielorrussas. Exóticas e perdidas. Sem família que as possa resgatar, ou um Estado que as defenda. Absolutamente disponíveis. É maravilhoso.»
Matilde está fascinada com a brutalidade que se adivinha por trás do tom cortês com que o velho pintor expõe as suas ideias. A cortesia é uma roupagem – os veludos bordados a fio de ouro que os senhores da Renascença envergaram para assistir à morte de Giordano Bruno na fogueira. Luro Baus partilha com eles e com a populaça a embriaguez do sangue, mas sabe que os seus motivos são superiores – maldade pura em vez de baixos instintos animais.
Meu Deus, quem é este homem? Matilde arrepia-se e, ao mesmo tempo, maravilha-se. Tem a sensação de contemplar de perto um anjo caído. Um sátiro encanecido, sem um pingo de moral naqueles olhos escuros e luminosos, ardentes como devem ter sido os olhos do diabo no sabbath. Mas a maldade que lhe entrevê na expressão tem qualquer coisa de grandioso. Pode-se imaginá-lo a queimar lentamente corpos de jovens mulheres enquanto prova um bourgogne. Matilde recorda certos quadros do pintor, o ciclo intitulado Jovens Mulheres Sofredoras, em que corpos nus são representados sujeitos a instrumentos de tortura medievais – estilizados em pinceladas impressionistas, deformantes, mais próximas do esboço que do delírio – o sangue metamorfoseado em luminosas manchas de tinta de cores primárias – e experimenta um arrepio: sabe naquele instante que eram verdadeiros. Talvez ela mesma venha a servir-lhe de modelo?
«Acha que eu poderia posar para si?» pergunta.
O pintor avalia-a. Os olhos dele examinam minuciosamente o corpo dela, o cabelo, as orelhas, os ombros, as ancas. Anda em redor dela para ver melhor a forma das pernas, o rabo, o peito – explica-lhe isso enquanto o faz, num tom de voz neutro, profissional. Essa frieza excita Matilde.
«Talvez», diz apenas.
Entram na divisão seguinte. Trata-se de um quarto não muito grande, imerso na penumbra. Uma vela arde a um canto. Luro Baus parou, em silêncio. Parece aguardar alguma coisa. Os olhos de Matilde habituam-se progressivamente à luz existente e ela consegue por fim distinguir a base da vela: um corpo humano invertido, admiravelmente real.
«Parece real», diz.
Depois verifica que o ligeiro frémito que agita a vela e que ela atribuíra às correntes de ar se propaga ao corpo. Incrédula, aproxima-se mais e compreende que o corpo é realmente um corpo humano vivo – o corpo de uma mulher nua numa difícil posição de ioga, cabeça e braços apoiados apoiados no chão, coxas e pernas flectidas de forma a desenharem um triângulo em que o vértice superior é constituído pelos pés, e a vela enfiada no sexo, ardendo no espaço vazio do triângulo.


«Meu Deus!» exclama.
Nota a posição perfeita do corpo. Os músculos claramente desenhados do ventre, os tendões das coxas. A cor vermelha da vela, que se confunde com a carne rosada. As meias negras ajudam a limitar o corpo ao essencial: o torso e a porção interna das coxas, a vulva e a vela acesa. Pequenas gotas de cera escorrem ao longo da vela e mergulham nos grandes lábios mas a mulher não reage. O corpo mantém-se imóvel, agitado apenas por leves movimentos respiratórios.
«Mas ela não se mexe?»
«É uma perfeição difícil de atingir. Mas, como pode ver, é possível.» O velho pintor fixa Matilde nos olhos enquanto diz isto. «Tu mesma», acrescenta depois de um instante de silêncio, «poderias fazê-lo.»
Matilde experimenta um leve arrepio ao ouvir aquilo. E ao notar o súbito tratamento por tu. Uma violência, vindo daquele homem tão formal, tão distante. Compreende a insinuação. Não pode sequer negar que a ideia a excita. As circunstâncias em que veio a casa de Luro Baus, sem cuecas e com o buttplug, obedecendo a ordens recebidas por e-mail, acodem-lhe mais uma vez à memória e dâo-lhe uma estranha sensação de vulnerabilidade.
«Esta foi uma das minhas obras mais difíceis», diz Luro Baus enquanto saem do quarto e avançam por um corredor vazio e branco. «Foi preciso encontrar uma escrava, treiná-la, condicioná-la – Luro Baus acentua a última palavra – condicioná-la foi o mais difícil e o mais importante. Para que uma obra destas resulte plenamente não chega que a escrava faça o que lhe ordenam; é necessário que adira inteiramente ao espírito da obra, que incarne verdadeiramente a ideia.»
Matilde lança um último olhar à mulher quando a porta do quarto se fecha. Vê como continua imóvel, uma estátua viva representando sem pausa para paredes vazias.
«Uma escultura de carne», continua Luro Baus. «Nada de original. Mais importante do que isso é a perversão essencial: para conseguir que ela desempenhasse satisfatoriamente o seu papel foi necessário recorrer a técnicas de ioga. Suspensão do espírito e disciplina do corpo. Foram meses de treino intenso e cuidadoso. Mas, onde o ioga procura a libertação do espírito, eu anulei o espírito e reduzi o corpo a um objecto. É destas perversões que eu gosto.»
«Ela está sempre ali?» pergunta Matilde.
Luro Baus lança-lhe um olhar penetrante:
«Queres dizer, sem utilidade evidente? Sem ser utilizada numa performance, por exemplo? Sem que alguém a veja ou admire?»
«Exactamente.»
«Sim. Está sempre ali. Como uma peça de mobiliário.»


Na sala seguinte as paredes nuas, com excepção de uma enorme fotografia a preto e branco de uma mulher enforcada. Matilde pára diante da fotografia. Está horrorizada e, ao mesmo tempo, fascinada.
«Essa fotografia», diz Luro Baus, «tem uma história muito longa. Conto-ta depois. Outro dia.»


Fica diante dele, olhos baixos, nua. Os sapatos de salto alto obrigam-na a lançar o peito para a frente, e a consciência dessa posição forçada é-lhe dolorosa.
«A primeira lição de submissão», diz Luro Baus, «é a seguinte: aprenderes a fazer seja o que for que te seja ordenado, sem hesitação ou discussão.»
Aponta uma barra de metal suspensa do tecto um pouco acima da cabeça dela:
«Vais agarrar a barra com ambas as mãos e ficar assim. A posição é boa porque as tuas mamas ficam totalmente expostas, acessíveis ao chicote. Não vais ser amarrada à barra, as tuas mãos ficarão livres», explica o pintor enquanto escolhe um chicote de entre vários numa mesa. «Mas não vais largar a barra. Nunca.»
Ele espera enquanto ela se põe em posição.
«Agora», diz.
Matilde ouve o silvo do chicote cortar o ar e logo a seguir uma dor aguda morde-lhe as mamas. Geme mas não larga a barra.
«Muito bem», diz Luro Baus.


A sessão dura 15 minutos: 40 chicotadas.
Um criado entra a meio e entrega a Luro um copo de vinho tinto. Luro faz uma pausa para provar o vinho, depois continua a chicoteá-la. Vai bebendo o vinho em pequenos goles.


«Agora vamos jantar», diz Luro, depois de a mandar soltar a barra.


Na posição em que ficou amarrada, Matilde não pode ver o que se passa à mesa. Pode apenas ouvir o tilintar de pratos e talheres, o ruído do vinho que cai no copo, pequenos rangidos da cadeira quando o pintor se move.

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